Brazil - BRAZZIL - Five little gems by Murilo Rubiao, Moacyr Scliar, and Wander Piroli - Short stories - Brazilian Literature - March 1998


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Rubião, Scliar, Piroli

The Trap

—I didn't guess a thing. I was just waiting for you. For two years now, in this chair, in the same position I am, I waited for you certain that you would come.

Murilo Rubião

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

—Estava à sua espera—disse, com uma voz macia.

Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

—Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

—Ah, esperava-me? —Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: —Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

—Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

—Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

—Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

—Antes que me dirija outras perguntas—e sei que tem muitas a fazer-me—quero saber o que aconteceu com Ema.

—Nada—respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

—Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

—Abandonou-me—deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: —Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

—Calculava, porém desejava ter certeza.

***

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam. 

O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse. Gesticulando nervoso, aproximara-se da mesa:

—Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo? Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

—Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

—O que está esperando, então?!—gritou Alexandre.—Mate-me logo!

—Não posso.

—Não pode ou não quer?

—Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

—Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

—Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta

—Gritarei, berrarei!

—Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

—Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

Blind Man and Friend

The police chief took his sweet time before talking to me. He certainly thought, "A blind man? What could have seen a blind man?" These silly things, you know how they are, Gedeão my friend.

Moacyr Scliar

—Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?

—Não, Cego. Foi um Simca Tufão.

—Um Simca Tufão?... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.

Este que passou agora não foi um Ford?

—Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.

—Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.

É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?

—Não, Cego. Foi uma lambreta.

—Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.

Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!

Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião… Este que passou não foi um Mercedinho?

—Não, Cego. Foi o ônibus. 

—Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.

Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?

—Não. Foi um Volkswagen 1964.

—Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época já costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?

—Não, Cego, não foi um Candango.

—Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.

Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!

—Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.

—Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra.

Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?

—Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.

—Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:

"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"

—"Mais ou menos às três da tarde, Cego"—respondeu ele. "Então"—disse eu.—"O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada. Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?"—era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?

—Não, Cego. Foi um Volkswagen.

—Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" —"Ora, delegado"—respondi. —"Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze."—"Como é que tu sabias das horas?"—perguntou o delegado. —"Ora, delegado"—respondi. —"Se há coisa que eu sei—além de reconhecer os carros pelo barulho do motor—é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?

—Não, Cego. Foi um Chevrolet.

—O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?

—Não, Cego. Foi um Ford 1956.

Pitiless

Our heart is bleeding. We didn't want to kill anybody. But we will have to make an exception for Alonso, Mexican dog.

Moacyr Scliar

Nós somos um temível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do Texas. O ano é 1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há muitas mortes. Temos remorsos. Por isto bebemos.

A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com desrespeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. O mexicano aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso coração se confrange. Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção para Alonso, cão mexicano.

Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais uma pequena bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos. Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. A população nos olha. Sabe que somos um temível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre Alonso. 

Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos olhando o teto, fumando. Suspiramos. Temos remorsos.

Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de rotina em nossos revólveres. Descemos.

A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da população fitos em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Ah, este vento! Este vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, de costas para o sol nascente?

No fim da rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.

Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.

Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. A filha mais velha se tornará prostituta. O filho menor, ladrão.

Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não devia nos ter dado duas bofetadas. Agora está aterrorizado. Seus dentes estragados chocalham. Que coisa triste.

Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre. Mas não sacamos. É o mexicano que saca. Vemos a arma em sua mão, ouvimos o disparo, a bala voa para o nosso peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos muita dor e tombamos.

Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.

Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.

Tenderness

He worked changing the pencil calmly as if he were in no hurry or even didn't want to finish his work. In the picture Getúlio kept on smiling to the man with one of his best smiles.

Wander Piroli

Como uma ilha entre as pessoas que se comprimiam no abrigo de bonde, o homem mantinha-se concentrado no seu serviço. Era especialista em colorir retrato e fazia caricatura em cinco minutos. No momento ele retocava uma foto de Getúlio Vargas, que mostrava um dos melhores sorrisos do presidente morto.

O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:

—Você, Maria.

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

—Aconteceu alguma coisa?

—Não—murmurou a mulher.

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

—Não houve mesmo nada?—tornou o homem.

—Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

—E os meninos?

—Mamãe está lá com eles.

—Como é que você arranjou para chegar até aqui?

—Uai, eu vim.

—A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

—Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

—Ah—o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.

—Fez alguma coisa hoje, Zé?

—Fiz um—respondeu levantandose. —Senta aqui. Você deve estar cansada.

A mulher sentou no tamborete, desajeitada. 

—Você não devia ter vindo, Maria—disse o homem. —Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.

—Mas ela não estava doente?

—Você sabe como mamãe é.

—E o Tonhinho?

—Está lá.

—O carnegão saiu?

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.

—Espera um pouquinho aí—disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.

—Esses pastéis.

—Oh, Zé, para que você fez isso?

—Vamos, come um.

—Você não devia ter comprado.

—Vamos.

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.

—Come o outro, Zé.

—Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu. —Então eu vou levar ele pros meninos.

—É pior, Maria.

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantarse:

— Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.

—Não, eu passei a manhã toda assentado.

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:

—Acho que eu vou andando.

—Já vai?

—Mamãe não agüenta eles, você sabe.

—Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.

O homem tirou uma nota do bolso de dentro do paletó e estendeu-a para a mulher.

—Volta de bonde.

—Não, Zé.

—É muito longe, criatura.

—Não.

—Ora, minha nega.

A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.

—Vou ver se levo.

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.

—Não chega tarde não, viu, Zé.

—Chego não.

—Você vai fazer.

—Hoje eu sei que vai melhorar.

—Vai sim, Zé. Eu sei que vai. Eu sei.

A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.

Party

The boy brings the beverage, the glasses and soon after, in a little plate, two breads with half meatball in each one. The man and (more than he) the children look inside the breads while the boy, accomplice, leaves. 

Wander Piroli

Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis branco, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.

Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.

O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.

—Duzentos e vinte.

O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.

—Que tal o pão com molho?—sugere o rapaz.

—Como?

—Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso.

O homem olha para os meninos.

—O preço é o mesmo—informa o rapaz.

—Está certo.

Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.

O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.

Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até à boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão.

O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.

Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.

In the original these stories were called "A armadilha", "Trabalhadores do Brasil", "Cego e Amigo Gedeão à Beira da Estrada", "Nós, o Pistoleiro, Não Devemos Ter Piedade", and "Festa". They were published in Para Gostar de Ler, Editora Ática, São Paulo, 96pp

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