Brazil - Brasil - BRAZZIL - "Clara" by Joyce Cavalccante -Short Story in Portuguese - Conto em Portugues - Portuguese Language - Brazilian Literature - June/July 2002


Brazzil
Literature
June/July 2002

Clear Act of Dealing
with the Unexpected

The more he thought the more the desire pierced him,
the more his body begged for that creature to be his.
The more his love burned, day and night.
He couldn't tell at what time his torment hurt the worst.

Joyce Cavalccante

For Monica Roizenbrunch,
who lives in Israel and
in the left side of my chest.

Ainda que a bodega não fosse o principal, único e mais vibrante ponto de encontro do vilarejo, Alain despenderia a eternidade em examinar suas prateleiras e contar, de uma por uma, as garrafas de bebidas expostas desordenadamente, umas pela metade outras ainda por abrir, só pelo gosto de estar perto daquela por quem seu coração se arcoirizava.

Clara. Clara como a própria paisagem que envolvia o local cheio de sol, som de mar e repuxo de vento. O vento que zunia a qualquer hora e muito mais à noite, depois que todos já tinham ido deitar.

Ele sempre ia deitar sozinho. Às vezes vestido mesmo, ficava olhando o teto no escuro. Sem esperanças, apagava o candeeiro que era pra não desperdiçar gás sem mais nem menos, e deixava que apenas a claridade do fogo em seu interior, aceso como as labaredas do inferno, queimasse seu peito e seu ventre entupido de desejo insatisfeito.

Aquilo devia ser condenação pelo mal que já tinha feito aos outros, principalmente às mulheres quantas e quantas. Talvez Clara fosse a vingança de alguma deusa que as protege. Seria tão bom se conseguisse restaurar-se e iniciar uma vida inocente de pessoa comum, com um pequeno emprego de onde tirar seu sustento e não ter de levar essa existência insegura de ator exótico que procurando a fama procura os lugares mais escondidos do mundo pra se encontrar. A verdadeira vida era com uma mulher pra cuidar, e no futuro, filhos pra assistir crescer e vê-lo morrer.

E a mulher devia ser Clara, a filha do bodegueiro. De apenas 15 anos e peitinhos empinados, coxas morenas, ventre quase nada, parecia uma tábua. Risada de perdição quando mostrava os dentes brancos e enfileirados. Alain se derretia quando pensava em enfiar sua língua sazonada por entre aquela trincheira de dentes; e conseguindo, experimentaria da língua verde da menina intocada.

Nesses pensamentos seu corpo ia logo avisando que queria muito mais, queria tudo, e se avolumava dentro das calças se com elas estivesse. Se estivesse nu se roçava na mão e lamentava ter que agir assim. Nunca tinha lhe faltado mulher. Muito melhor seria ter a moça por perto para brincarem.

Era tão menina que ainda gostava de vadiação. Naqueles três meses em que ele já se encontrava por lá, adorava assisti-la dançando de roda com outras menores, cirandando. Outra diversão era assisti-la bolinar com os bilros quando fazia a renda, ajudando a mãe a atender as encomendas da cidade grande. Diziam que o ganho era quase nada, mas todas as mulheres do vilarejo praiano trabalhavam naquilo desde que se entendiam por gente, conseguindo uns trocados para ajudar nas despesas. Clara embolava a saia e a prendia entre as pernas enquanto exercia essa habilidade. Quantas e quantas tardes Alain não perdeu escondido atrás do pé de tamarindo, só pelo gosto de contemplar os movimentos da moleca, que de olhos baixos, se entretinha concentrada no seu que fazer. A cada um desses movimentos, por mais sutil que parecesse, o coração do homem pulava de onde estava guardado querendo voar.

Num dia em que a estava seguindo, embrenhou-se na mata perseguindo-lhe a trilha, curioso, querendo saber o que ela ia inventar agora. Andava com cuidado, sem fazer barulho e guardando distância, mas assim mesmo foi apanhado. Se encontraram sozinhos e em pé, um de frente para o outro, sob as folhas crocantes. Teve intenção de deitá-la ali mesmo, abraçá-la realizando o ritual do casamento de seus sonhos. Mas não era assim desse jeito, não.

Percebeu que ela era tímida, muito tímida, pois avermelhou-se diante de seu olhar azul e meteu o pé na carreira, de vez em quando olhando pra trás. Ele não se moveu envergonhado temendo que ela tivesse, com seus olhos amarelados, lido seus pensamentos profanos. Se sentia como um menino besta.

Nem parecia aquele homem conquistador que fora com: Mariange, a mãe de seu filho já com vinte anos, que até hoje era capaz de aceitá-lo de volta. Gilda, que o seguiu do Brasil à França para obrigá-lo a dar-lhe seu amor nem que fosse sob a mira de um revólver. Natércia e Tereza, as duas atrizes que se dispuseram a dividi-lo entre si por mais de dois anos, já que ele era incapaz de oferecer exclusividade a qualquer mulher. Sílvia, a milionária que deixou com que ele se divertisse à vontade com sua fortuna. Amores maiores e menores que passaram pelo seu leito e quase nem lhe arranharam o coração. Amores que de tão numerosos e feéricos o tornaram descrente do amor, até que ele viesse, já maduro, parar naquela praia rasa, com a suspeita inconsciente de que era lá que acharia a mulher que nunca tinha tido.

Os olhos de Clara eram iguais aos de um lobo Guará. E a elegância quando caminhava também. Por isso não arredava o pé de perto dela, enquanto ela, a seu ver, não dava mostras de saber que ele existia. Tudo seria só fantasia de sua cabeça? Nem por isso ia desanimar. Fazia amizade com o pai dela, Seu Jair, trazendo-lhe coisas e novidades de suas breves viagens, contando-lhe estórias da Europa, lugar onde tinha nascido, e justamente por isso era mais conhecido como o Francês. Ninguém por ali o chamava pelo nome próprio.

Clara como as espumas que chiam do mar à praia. O nome Clara é o nome do céu azul que aqui se espalha. Nunca viu Alain ninguém nesse canto usar óculos escuros fora ele. Por isso, pedindo permissão ao bodegueiro, fez questão de presentear um dos seus àquela cujo pai nem desconfiava de nada.

Era um pai desses valente que quer porque quer que a filha se case, e por isso não a deixa procurar marido. Ai dela se levantasse os olhos pra algum vagabundo que cisca pela bodega. E ai do vagabundo que demonstrasse ao menos notar sua existência, mesmo que fosse ela própria quem servisse a cachaça de cada dia ao pé do balcão. Nessas oportunidades, Alain não saía de lá se obrigando a beber no intuito de observá-la mais de perto.

— Urgh. Não sei como eles agüentam essa coisa com gosto de remédio.

Detestando ou não, se embebedava igualzinho aos outros que apreciavam a maldita. E foi somente bêbado que conseguiu coragem para confessar-se.

Foi em plena tarde de terça que, suspeitando da falta de testemunhas, seguiu Clara enquanto essa ia com um balaio cheio de roupa suja debaixo do braço para lavar no rio. Um rio toldado que se encontrava com o mar bem pertinho da vila. Já com as pernas trôpegas, com dificuldade desceu a ribanceira se agarrando nos arbustos que sustentavam a ladeira de terra. Encantado assistia a agilidade imensa com que a menina, parecendo dançar, caminhava veloz, sem nem prestar cuidados ao que fazia, olhando para os lados, para o céu e pra trás. Foi assim que ela avistou o esforço de Alain para já quase alcançá-la. Assustada ela mudou de rumo entrando na igrejinha sem missa naquela tarde, mas de portas abertas, como sempre. O Padre morava lá.

— Deixe de algazarra, Clara — ralhou Dom Fernando. —Tenha modos. Isso não é jeito nem traje para se entrar na igreja.

Clara olhou pra trás e vendo Alain ainda em seu encalço, respondeu que queria se confessar. O padre foi se dirigindo ao confessionário e, vendo também Alain que nunca ia à missa, só pra provocar perguntou-lhe:

— E você, que deseja? Vem também se confessar?

—Também. — Respondeu o Francês sem outra desculpa mais plausível. — Agora ia ter que inventar pecado.

E que inventasse logo pois Clara não demorou nem cinco minutos aos pés do padre. Foi então sua vez. Ele a perdeu de vista. Suspeitava que ela não gostava dele, pois sempre escapava de uma prosa. Quanto mais pensava assim mais lhe espinhava o desejo, mais seu corpo pedia aquela criatura como sua. Mais seu amor ardia, tanto de dia como de noite. Nem saberia dizer a que horas o tormento era pior.

Foi quando soube que ela não sabia ler. Soube também o porquê disso. Escutou na bodega pela boca do próprio Seu Jair: era que em tendo muitos filhos não sobrava dinheiro para botar todos na escola.

— Mas a escola pública não é de graça? — perguntou Alain.

— É. — Respondeu o velho carrancudo, limpando o balcão com um pano encardido. — É. — Repetiu pensativo. — Mas os sapatos que eles usam pra ir pra lá custam caro. Não tenho dinheiro pra calçar todo esse povo.

Penalizado o Francês sentiu, como primeiro impulso, muita vontade de oferecer um ou mais de um par de sapatos à sua amada. Saiu da bodega malinando um jeito. Pensou, revirou o pensamento de costas, de frente, de costas de novo e bumba: A idéia lhe caiu como um ovo na calçada, espatifando-se em planos. Ia oferecer-se pra ensiná-la a ler. Mesmo que não soubesse muito bem o português, mesmo que ela ficasse alfabetizada metade em sua língua mãe metade noutra, ia encarar essa tarefa. Ia ensiná-la a contar também. Aí nem precisava muito, só os primeiros rudimentos da aritmética bastavam. Daria como justificativa o fato dela ter que ajudar o pai na bodega e pra isso ter que saber fazer as contas pra cobrar direitinho, e a escrever pra anotar os fiados. Ficaria assim convivendo todos os dias com sua menina que lhe prestaria toda a atenção durante muitas tardes. Por aí talvez surgisse o namoro. Primeiro secretamente, coisa só entre os dois. Depois falaria com seu pai, pediria a mão da moça afirmando suas sérias intenções. Casariam na capelinha, sendo abençoados por aquele padre azedo.

Mas cadê coragem pra enfrentar o bodegueiro com a proposta? Ele poderia desconfiar, ficar cismado, sei lá. Era um povo cheio de nove horas, esse daqui. Olhava pela janela pedindo conselhos a paisagem. Olhava pra dentro de seu quarto cheio de solidão. Imaginava-se numa casinha ali perto, toda asseadinha, com Clara calçada e alfabetizada lhe cuidando.

Por medo resolveu primeiro tentar falar com ela, perguntar sua opinião. Em vão tentou aproximar-se. Quando ela não corria pra longe, ficava calada sem deixá-lo perceber se tinha entendido ou não sua proposta. Talvez ele não lhe inspirasse confiança. Gastou muito esforço tentando se comunicar sem sucesso. O jeito era fazer as coisas através do pai, como era o uso. Portanto, bebeu umas talagadas de cachaça ali mesmo no balcão e cheio de coragem expôs seu projeto a quem já considerava seu futuro sogro. O homem lhe dirigiu um olhar descrente balançando a cabeça pra lá e pra cá. Depois perguntou se ele não tinha nada melhor pra empalhar seu tempo. Teoricamente presentes só os dois, mas podia-se perceber Clara escutando por detrás da porta.

Silêncio que finalmente o Seu Jair rompe:

— E por que então cê num ensina logo a cambada toda a ler, de uma vez?

— Como? Non Seu Jair. Non é uma boa idéia. Non acho que se deva tirar os meninos da escola pra aprender comigo.

— Num tô falando dos meninos machos não, mas das três meninas. Quem sabe elas sabendo ler vão ter mais serventia.

Por essa o Francês não esperava, mas não deixou que o homem percebesse seu embaraço e concordou. Ia ser o professor de Clara, a mais velha; de Joana, de 10 anos; e de Judite, a de quatro anos.

Comprou cadernos, lápis e borracha na cidade mais perto, pois na vila nem isso tinha. Dois dias depois recebeu as meninas na copa de sua casa com ar de autoridade. Estava todo feliz quando começou, mas depois deu pra se impacientar porque a pequenininha não prestava muita atenção. Voltou até o pai delas para sugerir que só as duas maiores estudassem. No futuro, quem sabe, ele ajudaria também a menor. O bodegueiro não só concordou como ficou elogiando, pra todos falando na bondade do Francês:

— Imagine que até merenda ele dá pras meninas que é para elas aprenderem melhor.

As outras meninas iletradas da vila começaram a olhá-lo com jeito pidão e suas mães também. Ainda bem que ninguém tinha coragem de abordá-lo. Era só o que faltava. Ora. Tinha que superar imensas dificuldades com apenas aquelas duas alunas pois, na realidade, não sabia escrever em português de forma nenhuma. Ia improvisando. Ia improvisando, enquanto elas aprendiam tudo torto.

Estava mesmo apaixonado. Sonhava todas as noites com a claríssima miragem, sentia seu cheiro, notava o brilho de seus cabelos e tinha vontade de comer seu sorriso. Ela agora já se dirigia a ele, e, como a irmã, só o chamava de professor. Ele, que nunca tinha ouvido o som de sua voz, delirava com aquilo. Respondia com meiguice, já quase avançando, todo derretido enquanto as duas iam se desasnando.

Mas aí houve o caso do Dico, um quase menino e simpático pescador, com Neusa, a filha do Neco, um outro pescador já calejado. Neusa e Dico andavam de chamego desde pirralhos. Mal botaram corpo se deram a praticar as coisas do amor como Deus disse que era pra fazer. E num é que a menina embuchou e assim fazendo condenou o namoradinho a ter sua garganta sangrada pela peixeira de Neco. Foi um corre-corre na vila, que inclusive preservou a honra de Clara por muito mais tempo. O Francês, se quisesse mesmo tê-la em seus louros e cabeludos braços, teria então duas alternativas: ou casar ou casar. Mas eu caso, garantia-se Alain. Pois num é mais ou menos isso que eu quero? Basta ela me querer, eu quero. Para obtê-la faria qualquer sacrifício. E se perdia em físicas satisfações solitárias enquanto, claro, Clara não se entregava. Depois, tudo mudaria.

Clarissimamente ela ainda lhe fugia como mulher, embora como menina por ele demonstrasse adoração. Isso depois que o teve por mestre, mas só isso ele não queria. Desejava-a apaixonada, entregue, indefesa em seus braços como as tantas outras que possuiu.Tudo passava pela cabeça do apaixonado estrangeiro enquanto bebia sua cachacinha diária na bodega do futuro sogro. Um sogro forte e macho que não se separava da peixeira nem para tomar banho, como ele mesmo afirmava. Se era assim, Alain falaria com ele de macho pra macho, apesar do receio de toda aquela violência inserida na cultura selvagem dali. Por ela faria qualquer coisa. Iria expor suas boas intenções e o convenceria, mas só no dia em que tivesse certeza do claro amor da menina da cor do cacau.

Embevecido contemplava sua musa. Que o esperassem nas grandes cidades, no velho mundo. Pensava enquanto fitava Clara varrendo o chão de barro da bodega. Pés descalços, pernas lindíssimas por serem apenas pernas que se movimentavam ondulando a minissaia de fazenda barata e desbotada. Ao vê-la abaixar-se pra apanhar o lixo com a pá vislumbrou sua calcinha. Fazendo a emoção não cegá-lo, ia se retirando. Não poderia tanto sofrer. Ah Clara, quando é que vamos casar?

Adivinhando-lhe quem sabe os pensamentos ela lhe dirigiu um olhar correspondente. Derrubando a vassoura, a timidez, a vergonha, a infantilidade e tudo Clara atirou-se em seus braços espantados. Ofereceu sua boca virgem para ser esmagada por um beijo que não veio. E confessou trêmula:

— Não tenha medo. Não pense que o papai vai se zangar. Ele já sabe. Te amo há muito tempo. Desde quando você chegou aqui. Eu nem sei mais viver sem pensar em você.

E no seu linguajar de radionovelas falou muito mais coisas, incluindo casamento. Seus braços esquálidos de criança subalimentada ainda envolviam-lhe o pescoço. Seu hálito era viciado como de quem não escova os dentes. Alain tomou uma pouca distância, encarnado de vergonha. Olhou tudo de perto. Uns peitinhos que eram quase nada, parecia um rapaz. Ventre magro, ossos pontiagudos se sobressaindo no vestido puído. Um cheiro estranho de fumaça saía pelos seus cabelos. Pobrezinha, pensou o rapaz que subitamente passou a enxergar tudo por outro ângulo.

Enquanto ela repetia — Eu te amo — cabisbaixamente o Francês saía de cena, tendo como público toda família de Clara que, esperando uma conclusão feliz, a tudo assistira pelas frestas da janela. Lembrou-se imediatamente que teria que retornar para o de onde tinha vindo.

Joyce Cavalccante is the president of REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras—Brazilian Women Writers Network) - http://rebra.org. She is considered one of the most compelling contemporary women writers in Brazil. Cavalccante is the author of seven books, among them O Cão Chupando Manga. Her books in Portuguese and English can be found at www.amazon.com  

This unpublished short story, called "Claro Ato de Lidar com o Inesperado" in the original, will be included in her next book: Longos Trechos de Dias Líqüidos. Learn more about her at http://www.geocities.com/~joycava/

Cavalccante can be reached at joycava@rebra.org  


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