Brazil - BRAZZIL - "Eva" by Andre Charak - Short story - Brazilian Literature - January 1998


Eva

She might have lost her cool and might have told him that it was none of his business what she was doing or that maybe she was in love. She could have said that he was nothing more than a scoundrel, an irresponsible, trying to prove something to himself, putting at risk her life. This would just worsen things though. And the weapon was still there within his grasp. Now that he was calm it would be better to keep him this way. There was a chance to end the night without further damage.

André Charak

—Pronta para começar?

Eva sentiu o coração disparar. Não que não estivesse, era praticamente a única coisa que conseguia pensar nas últimas vinte e quatro horas. A idéia, depois de pensada, repensada e consolidada, nunca chegou a assustá-la. Claro, quando se deposita toda a confiança que se pode dispor em um único e último refúgio, não há como duvidar da própria insistência em vencer. Tábua de salvação, agarrar-se a ela com unhas e dentes. Tudo se resumia em confiar no próprio instinto.

Mais uma vez, ele não a trairia. Ainda mais neste momento, quando todas as evidências indicavam caminhos sem futuro. Ele, instinto, não falharia. O coração disparou sim, em evidente sinal de que o temor perante toda aquela situação subsistia, escondido por entre tantos desejos de solução. Estar preparada para tudo era a única certeza que Eva podia dispor naquele momento.

—Acho que sim—disse.

O médico ligou o pequeno gravador. Trouxe-o mais perto de si.

—Quinta-feira, vinte e cinco de agosto. Nove horas e quarenta minutos. Paciente: Eva Miller. Segunda sessão.

Ele moveu o aparelho para perto dela. Dispersa em adrenalina, Eva sentiu-se mais do que nunca forte, disposta a lutar até as últimas conseqüências. Os sinais involuntários que seu organismo exibia nada tinham a ver com o ideal que dominava sua mente e espírito.

—Procure relaxar, Eva—ele disse num tom suave.—Procure não se preocupar com as coisas à sua volta. Concentre-se apenas na sua tranqüilidade, apenas no que sente neste momento.

Seguindo suas instruções—aliás tudo parecia mais fácil quando ele estava no comando—ela procurou relaxar. Deixou que a respiração fluísse normalmente; soltou pernas e braços, relaxando todos os músculos. Em momento algum pensou que pudesse ter seu caminho desviado para dar lugar aos recentes "transes", embora o momento fosse mais do que propício para este tipo de manifestação. Paz, tranqüilidade, meditação, e uma repentina série de visões que tomariam sua mente como naquele dia no escritório. Tudo então desfeito na bolha de sangue.

Mas não foi nada disso que aconteceu. O que Eva teve à sua frente, para sua própria surpresa, foi o mar.

Águas serenas e delicadamente aquecidas, num movimento quase que imperceptível. Azul, límpido como o céu, regado ao fundo pelo leve toque de uma brisa. A vida ali, intensa, ainda que não existisse de forma concreta. Não era a forma. Era a essência. Suficiente para retornar seus batimentos cardíacos ao ritmo normal. Suficiente para sentir o corpo flutuando no espaço, como se de repente a poltrona vinho, entre ela e o chão, não fizesse mais parte daquele ambiente. Como se tudo não passasse de mágica...

—Vejo que estamos progredindo—observou o médico assim que percebeu que a fisionomia dela vinha se alterando, exatamente para o ponto onde queria chegar. Suas palavras pareceram ecoar do fundo de algum lago subterrâneo. Naquela atmosfera, era como se ele nunca tivesse estado ali.

Ele não mudou seu comportamento. Deixou que Eva seguisse procurando por si mesma seu equilíbrio. Apertou o botão de pausa, e só voltaria a desapertá-lo cerca de oito minutos depois, no instante em que Eva parecia ter atingido um ponto imaginário ideal.

—Quase oito minutos em estado de relaxamento—disse ao pequeno aparelho.—Sente-se perfeitamente bem, não é mesmo, Eva?

Ela acenou positivamente.

—Ótimo. Quero que vá, lentamente, incorporando novas imagens ao que está vendo. Vê alguma coisa, não?

—O mar.

—Perfeito. Estamos começando muito bem. Vê você nele?

—Não.

—Tem certeza?

—Absoluta. Não há vida. Apenas imagens.

—Pois bem, vamos dar vida a estas imagens. Quero que projete a sua própria imagem no mar. Da maneira que quiser, não importa. Consegue fazê-lo?

Ela viu então sua própria figura surgindo nas águas claras. Como um Deus, pairando acima delas, sem deixar o equilíbrio de toda aquela situação desaparecer.

—Sim—disse finalmente.—Estou ali.

—Muito bom. Muito bom mesmo. Pois bem, nada do que vamos fazer daqui para frente é difícil ou perigoso. Trata-se apenas de um jogo, e caberá a você coordená-lo. Estarei aqui apenas para lhe fornecer algumas instruções e fazer algumas perguntas. Está bem assim?

Novamente um sinal positivo.

—Ótimo. Podemos dar seqüência.

Alguma coisa era diferente. Cores vivas, vida onde não havia vida. As palavras do médico a ecoar em seus ouvidos. Estava gostando da viagem, e tudo parecia ter começado sem que tivesse chance de perceber.

Nunca tinha experimentado drogas ou qualquer tipo de alucinógeno mas achou que a sensação não poderia ser muito diferente. O que sentia, naquele momento, era um bem-estar sem precedentes.

—Eva—a voz dele voltou a soar do infinito.—Concentre-se. Quero que vá buscar em sua mente os tempos em que era mais moça. O mar dará espaço para novos quadros, mas você permanece. Não se preocupe com o que vê, nada de mal poderá lhe acontecer. São apenas imagens. Responda apenas às minhas perguntas, está bem?

Outro aceno.

Em seguida, um mergulho nas profundezas do tempo. A MIC, os primeiros desafios, as tentativas com o primeiro Miller. Blake,o orfanato, irmã Angélica.

—Onde estamos, Eva?

A voz dele não a interrompeu, apenas flutuou pelo aposento até invadir seus ouvidos. Sem perturbar as imagens.

—Em Campinas.

—O orfanato?

—É. Tenho doze anos.

—Doze anos...Vamos um pouco mais além. O que vê antes disso?

As imagens retrocederam ainda mais. Sua expressão não se alterou.

—Tenho oito anos—disse de repente.

—E onde você está?

—Em casa. Papai, mamãe e Dick, meu cachorrinho. Tudo é verde.

—Verde. Ótimo. Sente-se bem?

—Sim, muito bem.

—Então vamos avançar no tempo. Lembra-se do piquenique à beira do riacho?

—Fizemos vários.

—Falo de um em especial. Um domingo, Eva.

—Fizemos vários—ela repetiu—sempre no domingo.

—OK. Vejamos, há um domingo em que tudo foi diferente, muito triste. Não são boas lembranças. Sabe de que estou falando?

Ela parecia buscar alguma resposta.

—Sei—disse por fim.—Nunca me senti tão triste. Estou só.—Vamos do começo.

A seqüência seria automática.

***

Ele se acostumou a ver cenas como aquela. Mudava o local, as pessoas que queriam fazer parte da notícia, o espocar dos flashes. A rotina? A mesma de sempre. Identificar-se, procurar o delegado da área, assumir a situação. Tão automático que não havia mais qualquer constrangimento. Mário era, mais uma vez, o responsável direto por um assassinato, e este peso—ainda que o afligisse nos momentos solitários de reflexão—parecia não incomodar. Era como dizer "Dane-se, faz parte do meu trabalho. Enquanto estiverem morrendo por aí, terei alguma coisa para fazer." Avenida dos Bandeirantes, e lá estava o corpo.

Alguma identificação?—adiantou-se ao delegado da área.

—Aqui está. Carteira de motorista, identidade. O nome dele é José Daniel Spigel.

Mário levantou o lençol. Gordo, um pouco maior do que de costume. Quarenta, talvez nem isso. Ingenuidade nos traços. Um ser aparentemente inofensivo.

—Uns moleques encontraram-no dentro do carro, por volta das seis e meia. Já estava completamente morto.

" Completamente morto? O que me diz de parcialmente morto, estúpido?"—Mário optou por não se pronunciar. Quando se extrapola os limites, seja numa série de assassinatos, seja no trato com seres que parecem ter caído de outro planeta, é da natureza humana se conformar. Para que se preocupar em demasia com os fatos se eles insistirão em ocorrer, queira você ou não? Não se pode fazer muito a respeito. Claro, um dia tudo chega ao fim, mas sua atitude não muda o processo.

Pensar diferente não mudaria as coisas. O conformismo—não do ponto de vista de uma solução final, mas na maneira como aquilo poderia afetá-lo—já fazia parte de si mesmo.

***

—Há sol...—Eva continuou, os olhos ainda fechados.—Muito calor, dia ideal para um piquenique. Adoro um domingo assim, me faz mais feliz. Sei que vamos ao riacho, e ajudo mamãe a preparar a cestinha: sanduíche de queijo, presunto e ovo. Salame, tomates e uma lata de sardinha. Argh, detesto sardinhas. Tem também água e coca-cola. A cerveja é para o papai. As uvas e as cerejas levamos de casa; as amoras colhemos por lá. Ah, o Dick fica com a carninha moída que a mamãe prepara para ele. Acho que ele é o que mais gosta destes piqueniques. Fica correndo pelo mato, por entre as árvores. Não se cansa de brincar.

—Você brinca com ele?

—Brinco. Sempre. Agora estou brincando com ele. Mamãe diz que é hora de parar para ele comer alguma coisa. Diz que ele está com cara de fome, mas para mim os cachorros sempre estão com cara de fome. Papai pede que eu o leve para perto das árvores, onde eu tinha deixado o pratinho com a comidinha dele. Então nós vamos para perto das árvores.

Samuel presumiu que logo o clima ficaria mais pesado. Mas, se de fato aí estava a chave de todo aquele problema, não havia como evitá-lo.

—E então, Eva, o que acontece?

Pela primeira vez ela mudou sua expressão. O ar alegre de criança deu lugar à angústia, refletida no movimento dos lábios e no tremular das palavras que passou a pronunciar.

—Papai se afasta, vai na direção do lago. Primeiro sobe até as pedras, depois desaparece lá para baixo. Mamãe vai atrás dele. "Aonde você vai, mamãe?'', eu pergunto. Ela diz que papai está lá e que vai trazê-lo de volta. Diz para eu continuar ali com o Dick.

Parou por um instante. A primeira lágrima não hesitou em escorrer.

—Mas você não continua ali, não é?

A situação iria piorar.

—Não. Deixei Dick ali e também subi para ver o que estava acontecendo. Não fui pelo mesmo lado, mamãe me daria a maior bronca se me visse por ali. Mas também não fiquei muito longe.

—E o que você vê, Eva?

—Oh, não, por favor, não deixe isso acontecer!—ela pareceu perder o controle. De novo não!

—Procure manter a calma, Eva. Não há o que temer. O que você vê?

—Vejo papai, conversando com dois homens. Eles têm cara de mau, não parecem ser boas pessoas. Um deles tira uma faca e... não, isso não pode estar acontecendo! Ele está furando papai, papai está sangrando! Ele caiu e estão batendo nele!

Transpondo a cena, como se tudo acontecesse naquele exato momento, Eva não tinha mais controle sobre qualquer sentimento. Chorando, era a própria garotinha, vinte e quatro anos antes, diante de um abalo que a marcaria para o resto da vida.

—Não consigo me mexer, estou com medo. Vejo mamãe procurando por mim, mas não consigo chamá-la. Oh, não, os homens maus estão atrás dela! Mas graças a Deus ela me viu. Vem vindo na minha direção, diz para fugirmos dali depressa. "Mas e papai?", eu pergunto. "Papai se foi, Eva." Não entendo, o que ela quer dizer com "se foi"? Agora não importa, temos que correr. Tenho medo, muito medo. Eles estão atrás da gente, correndo atrás da gente, e eu nem sei onde está o Dick! Onde ele se meteu? Deveria estar com a gente!

—Não se preocupe com ele agora. Dick está bem, salvo perto das árvores. Me conte o que está acontecendo.

—Há um homem, bem na nossa frente. É um deles! Mamãe me empurra para um lado e diz "Fuja daqui, meu bem. Fuja depressa!". Não quero ficar sozinha, tenho medo. Mas se eu ficar o outro vai me pegar também! Mamãe mandou fugir, e é isso que tenho que fazer. Correr, correr...—Estou correndo o máximo que posso. Vi quando o homem bateu em mamãe e ela caiu. Não quero que o outro faça isso comigo. Por isso vou continuar correndo, não quero olhar para trás, o outro homem mau deve estar bem aí, atrás de mim. Mas não posso, sinto as pernas doendo, não consigo respirar direito. Tenho que parar, mas e se ele me pegar?

—Ele não vai pegar você, Eva. Pode parar se quiser.

Ela parou. A fala fez o mesmo. Parecia tomar fôlego.

—Ele não está atrás de mim. Há uns arbustos aqui, e posso me esconder entre eles. Espere, vejo eles lá no fundo, mas eles não podem me ver. Oh, Deus, mamãe está ali! Tiraram toda a roupa dela, e o outro homem, em cima dela, também está sem roupa. Ouço os gritos dela. Por que eles não a deixam em paz?! O outro homem também está tirando a calça. Acho que vão deixá-la em paz depois desta brincadeira. Ou será que não? Será que... oh, não, por favor, não!

Eva estremeceu na poltrona Agarrou-se aos braços como se fosse arrancar fora o tecido.

—O que está acontecendo, Eva?

—Estou vendo a faca novamente! Estão enfiando nela! Não deixe que isso aconteça! Por favor, não deixe eles fazerem isso!

O médico então se aproximou. Procurou contê-la, antes que começasse a se debater.

—Eva, é o Doutor Samuel que está falando com você. Quero que apague imediatamente as imagens que vê. Você está no meu consultório, não há nada para temer.

Foi como um estalo. Ela abriu os olhos encharcados e olhou para os dedos que segundos antes queriam arrebentar o móvel. Olhou então para o médico, numa clara expressão de quem não entendia absolutamente nada do que estava se passando.

—Está tudo bem agora—ele disse.—Estamos aqui, eu e você. Tome isso,—estendeu um pequeno cálice com uísque.—Vai se sentir melhor.

Eva tomou-o num só gole. Estava atônita. Sabia que tinha acabado de passar por uma experiência inédita, mas não sabia precisar o que havia sentido ou imaginado.

—Confusa?—perguntou o médico.

—Muito. Pode me explicar o que aconteceu?

—Claro. Você acaba de retornar de parte do seu passado.

Ela pareceu duvidar.

—O senhor quer dizer...

—É exatamente isso que quero dizer. Oito anos, Eva. É a idade que tinha.

Não havia restado nada. Nenhum flash, nenhum vestígio.

—Não se preocupe, não há nada para lembrar. Estranharia caso se lembrassse de alguma coisa.

—E então?

—Procure relaxar agora. Não há motivos para se preocupar.

—Não se trata de preocupação, doutor. Quero saber se há algo esclarecedor, algo que nos permita chegar a uma saída.

Ele a olhou por sobre os óculos.

—O que quer ouvir exatamente?

—Apenas a verdade. Há ou não alguma saída?

Ele não respondeu de imediato. Também não teve como intenção criar um clima de suspense, mas foi exatamente por aí que a coisa caminhou.

—Sim—disse por fim.—Há uma solução. Estamos ainda longe dela, lembre-se que este é apenas o início do processo. Mas sei que este é o tipo de resposta que lhe trará mais confiança, e isso é importante para a continuidade do tratamento.

—Pode apostar. Esta era a única resposta que eu gostaria de ouvir, doutor.

—Pois então fique tranqüila. Há material de sobra para encontrarmos um caminho. Estas perturbações que você vem tendo têm uma causa, e nós acharemos o ponto em que tudo parece se romper. Só não podemos nos deixar levar pelo entusiasmo. Ainda há muita coisa para ser analisada.

—Entendo. Minha preocupação não é sair correndo desesperadamente em busca de alguma coisa, mas sim ter a certeza de que há alguma coisa para se correr atrás—se havia algo que ela sabia, em meio a todas aquelas questões, era que nada se resolveria num passe de mágica. Estaria sujeita às oscilações do processo, e isto apenas o tempo poderia resolver. Naquele momento, bastava um sinal, um sinal de que existiam alternativas. E ele parecia tê-lo dado.

—Ótimo. Prosseguiremos então amanhã, se não houver nenhum problema de sua parte, Eva.

—Não, claro que não. Trato isso como prioridade. Apenas não sei se minha presença aqui, um dia após o outro...

—De modo algum. Enquanto especialista, você também é minha prioridade.

Trocaram um caloroso aperto de mãos.

—Por enquanto, doutor, o que posso lhe dizer é muito obrigada.

—Não há de quê.

—O senhor acendeu um fio de esperança, em todos os sentidos.

—Fico feliz em ouvir isso. Mas lembre-se que dependerá quase que exclusivamente de você o sucesso deste tratamento.

—O senhor sabe, no que depender de mim...

—Tudo dará certo.

Eva saiu e o médico voltou ao seu pequeno gravador.

—Onze e quarenta, fim da segunda sessão. A paciente Eva Miller acaba de retratar o que parece ser o momento mais delicado de sua vida: o assassinato do pai, seguido de estupro e morte da mãe. Ao que consta, acompanhou a cena, mas não há nada que a faça lembrar. A lembrança estimulada, via hipnose, remete a paciente a um estado de completo pânico. E é justamente este pânico que a leva a esconder, subconscientemente, todo o mal que a cena representa. Por alguma razão que tentarei descobrir num futuro próximo, esta memória, acostumada a viver no vazio, insiste em se manifestar. Esta é a chave; bem trabalhada, poderemos ter excelentes resultados—ele deu uns goles antes de prosseguir.—Caso contrário, ela jamais poderá voltar ao seu estado normal.

Ele desligou o gravador. O botão interrompia apenas um movimento mecânico, porque seu cérebro continuava trabalhando, no único propósito de reverter todo aquele processo.

Penoso, pensou. Recompensador, ao mesmo tempo.

***

Como em qualquer grande aglomerado urbano, o tempo parecia evaporar, transformando em noite o que poucos minutos antes era dia. O ritmo alucinante—como sempre—era esse. Ainda haveria espaço para os aventureiros, dispostos a enfrentar mais barulho e agitação. O trânsito ainda perduraria por mais algumas horas, não haveria espaço para tantos carros. Pior: tinha jogo do Corinthians no Pacaembu.

Mário não conseguiu se ocupar de outra coisa durante o dia a não ser o fato de que mais tarde estaria sentado novamente com ela, disposto a retomar um fio semi enrolado. Culpa daquele intrometido, Fernando. Não era esse o nome dele? Tudo bem, não importava. Importava que o grande momento estava prestes a chegar, era apenas uma questão de tempo. Fantasias que colocavam de lado a MIC e seus problemas (embora sua disposição em ajudar não houvesse mudado), Liza e seus escolhidos. Ah, aí estava ela de novo. Até quando? Pelo que o SIA tinha conseguido levantar, o tal José Daniel não passava de um pobre coitado, solitário e sem maiores pretensões na vida. A sexta vítima, condenada pela insônia e sujeita a vagar pelas ruas para não entrar em paranóia. Fim do seu caminho, sem poder entender porquê. E a única coisa que ele poderia fazer a respeito era esperar.

Mesmo? Ou seria esta a desculpa mais conveniente que ele mesmo se impunha para não ter que agir? Medo? Talvez. De qualquer maneira, questões sem respostas que o tempo se encarregaria de solucionar. E o teinpo, à sua maneira, se encarregaria de aumentar o número de vítimas. Enquanto não houvesse nada de concreto que pudesse ser apurado, ou um novo encontro que o destino lhe reservasse, não havia muito a fazer. Aguardar, até onde a paciência do Hermes pudesse alcançar.

Hora para outros afazeres. Quando se tem a oportunidade de estar a sós com a mulher que se ama (ainda que seja ela quem pague pelos seus serviços), qualquer preparação para a ocasião é motivo de euforia. O nó da gravata tinha que ser dado em frente ao espelho, mas ao entrar no banheiro ele se lembrou que não tinha mais um. Tarde demais, teria que improvisar. Entre se arrumar e abusar de um frasco de perfume barato não se seguiram mais do que vinte minutos. Tempo suficiente, não haveria atraso. Que ótimo ela também gostar de comida japonesa.

Eva tinha insistido em ir sozinha, e chegou ao restaurante antes dele. Trazia na bolsa apenas uns trocados, um batom e cartões de crédito. Na cabeça, um volume menor de preocupações, entre elas o próprio Mário. O melhor que tinha a fazer, pensou, era deixar que tudo se desenrolasse naturalmente.

O que não percebeu, assim que deixou o prédio, foi a presença do vulto encapotado da noite anterior. Estava parado ali há horas. Seguiu-a até o restaurante, tomando o cuidado de estacionar do outro lado da rua, uma esquina antes. Permaneceria ali, atento, até que ela saísse. E imaginava que fosse acompanhada.

No banco traseiro, escondida por baixo da capa, havia uma pequena pistola.

***

—Por aqui, senhor—O garçom indicou uma mesa mais ao fundo. Para sua surpresa, Eva já estava ali.

—Boa noite—disse, enquanto se curvava num galanteio.—E obrigado por ter aceitado o convite deste seu humilde servo.

—Pare com isso—ela riu—ou juro que o chamo de delegado Ventura pelo resto da noite.

—Oh, não, eu não suportaria. Permite que eu me sente?

Ela apontou para a cadeira.

—Desculpe se a fiz esperar. Isto não teria acontecido se tivesse aceitado minha carona.

—Não se preocupe. Faz parte do jogo.

—Jogo?—ele repetiu. Entendia, claro, mas forçar uma situação parecia interessante.—Que jogo?

—Ora, não seja cínico. Este papel não fica bem para você.

—Mesmo? E você não me parece do tipo que gosta de jogos. Séria, equilibrada, nada de apostas. Em que espécie de jogo gostaria de entrar?

—Que tal começarmos tudo de novo?—Ela apontou para a porta. Você entra, pede desculpas pelo atraso, eu lhe indico a cadeira.

Mário ameaçou levantar-se e ela o interceptou de imediato.

—Mário!—ela riu.—Onde pensa que vai? Eu estava brincando!

—Eu sei. Gosto das coisas assim. Faz parte do meu jogo...

Ambos tinham a impressão de se conhecerem há muito tempo. Qualquer um que os observasse durante aquele jantar descontraído teria dito o mesmo. Mário acreditava estar diante de alguém que, depois de muito tempo, era capaz de mexer com ele. Eva, sem entrar a fundo nas questões expressas por seu coração, estava certa de que aquele homem, qualificado e seguro, encontraria os culpados dentro da MIC. Estava ali não por simples acaso, mas por obra divina. Um anjo? Era esta exatamente a imagem que tinha diante dos olhos quando a voz dele quebrou o encanto.

—Nada como um belo sushi...—ele ainda limpava a ponta dos lábios.

—Concordo, você fez uma boa escolha.

—Além do mais gosto particularmente do lugar. Me trás boas recordações.

—Recordações...—ela repetiu. Parecia querer se lembrar de alguma coisa.

—O que é que tem?

—Você falou em recordações, estou tentando me lembrar do nome.

Espere um pouco… Como era mesmo?

—O nome...

—É, o restaurante. Tudo bem, não importa. Me lembro de ser um lugar muito parecido.

—Onde? Aqui mesmo, em São Paulo?

—Não, em Marília.

Mário engasgou e quase perdeu o controle. A frase teve um efeito devastador, e ele estremeceu dos pés à cabeça ao ouvi-la.

—O que foi? Por acaso eu disse algo errado?

—Marília? Você disse Marília?

—Disse. Algum problema?

Ele tentou minimizar o efeito.

—Não, claro que não. Esteve mesmo lá?

—Por que acha que eu mentiria?

—Desculpe, não foi isso que quis dizer. Mas sei do que você está falando. O Nishi.

Ela sorriu.

—Então você conhece. Já esteve lá também?

—Sim. Não faz muito tempo, mas não era uma ocasião das melhores.

—Nada de passeios, suponho.

—Não tratava-se de uma investigação. Assassinato. Prefiro conversar sobre isso outra hora, não acho que este seja o melhor momento.

—Tudo bem, sem problema. Inclusive, já está ficando tarde.

—Planos para amanhã de manhã?

—Estarei de novo com...—foi tão automático que mal teve tempo para contê-las. As palavras saíram, embora não fossem comprometedoras.—... Uma reunião fora da MIC. Fornecedores—completou.

—Me permite levá-la? Ou usar seu chofer na volta também faz parte do jogo?

Ela riu, consentindo com a cabeça. Tinha vontade de estar com ele.

Será um prazer, señorita.

Em meio às luzes que brilhavam na cidade de São Paulo, navegava um Santana azul, seguido de perto por um Kadett cinza que havia estacionado uma esquina antes. Ela estava acompanhada, como previsto. Era hora de receber seu castigo.

O Santana parou em frente ao prédio, mas ela não desceu. O carro cinza estacionou um pouco mais atrás. A escuridão e a fina garoa não permitiam uma boa visão, e logo seu motorista estava fora do carro. Escondeu-se atrás de uma árvore—embora ali também não tivesse uma visão privilegiada—mas ao menos estava protegido da chuva.

—Você ainda não me disse por que esteve em Marília, Eva.

—Nada demais, apenas uma visita a um de nossos maiores clientes. JD & Cia., atuam junto ao pequeno varejo e cobrem quase que todo o interior do estado. Claro, têm uma excelente estrutura de distribuição, são capazes de... Desculpe. Acho que me empolgo quando começo a falar de negócios.

—Não há nada de errado nisso.

É que às vezes acho que pode ser chato para quem não entende do assunto.

O vulto permaneceu na escuridão. Impaciente. Vez por outra, limpava o rosto molhado, sempre com a mão esquerda. À direita, dentro do bolso da capa, segurava a pistola.

—E quando foi isso, Eva?

—Há cerca de um mês. Faz alguma diferença?

—Não, claro que não. Pensei apenas que poderíamos ter estado lá na mesma época.

—Quando você esteve em Marília, Mário?

—Humm... deixe-me ver. Acho que há pouco mais de um ano.

—E você esteve no Nishi...

—Isso mesmo.

—Mário—ela diminuiu o volume do rádio—o Nishi não existia há um ano. Conheço Marília há um bom tempo.

—Não?—teria sido mais fácil contar que estivera lá na mesma época, e que tudo não passava de uma simples coincidência. Seguramente, não havia qualquer razão para poupá-la, e ele não sabia dizer como tinha se metido numa mentira sem sentido.—Tem certeza?

—Claro que tenho. Onde você quer chegar?

—Eu? A lugar nenhum. Devo ter confundido as datas, só isso. Há quanto tempo...

—Sete meses—ela interrompeu de imediato.—Não mais do que isso. O Nishi está ali há sete meses.

Ele parou para pensar.

—Vejamos... sete meses, isso dá... janeiro. Fevereiro, é isso. Estive lá em fevereiro, agora me lembro. Era dia onze, voltei mais cedo porque era aniversário do meu irmão.

Ela não respondeu.

—O tempo passa rápido, não é mesmo? Poderia jurar que estive lá há mais de um ano. E, também, que diferença faz?

Nenhuma. Claro que nenhuma. Só estranhei, nada mais.

A pistola foi lentamente sendo erguida para fora do bolso. O vulto deu dois ou três passos na direção deles, enquanto fazia o movimento. Deveria correr e disparar dois tiros pela janela. Um para ela, outro para a testemunha. Sem vestígios.

—Tenho que ir, Mário. Foi uma noite das mais agradáveis.

—Sem amigos desta vez, certo?

Ela riu.

—Certo.

—Tudo bem, Eva. Mas antes de você ir, há algo que gostaria de dizer. Não tive oportunidade de dizer no jantar, ou tive medo, eu acho.

—Medo?

É, sei lá, medo do que pudesse acontecer, medo de que pudesse perder todo o encanto. Gostaria que não fosse aqui, no carro, mas não tem outro jeito.

Ele se aproximava, mais e mais. Perto, bem perto dela, e quando preparou-se para fazer mira...

Não sou apenas um policial interessado em resolver os problemas da MIC. Gosto de você, Eva, muito mais do que você pode imaginar. Desde aquele dia que nos encontramos no veterinário, não tenho pensado em outra coisa.

Duas pessoas vinham na direção contrária. Ele recolheu a arma, escondendo-se novamente por entre as árvores. Teria outra oportunidade.

—Mário...

—Por favor, Eva, deixe-me ir até o fim. Aceitei esse trabalho muito mais por saber que poderia estar perto de você. Sabia que só assim conseguiria chegar a situações como esta.

—Você quer dizer, sair, jantar, se divertir?

—Isso mesmo. Não se trata de abdicar da minha condição de profissional, longe disso. Apenas usei-a como um meio de me aproximar de você.

Ela parecia receptiva.

—Tudo bem, eu entendo. Por outro lado, acho que usei desta sua fraqueza para fazer com que se aproximasse de mim a fim de resolver meus problemas. Interessante, não? Este é o jogo, Mário.

—E quem leva vantagem?

—Os dois. Tudo começou com um determinado propósito, exclusivamente profissional. Você, muito mais interessado em estar próximo a mim do que resolver qualquer coisa.

—Espere um pouco, isto não significa que eu não estivesse disposto a esclarecer as coisas na MIC. Estava e ainda estou.

—Claro, quanto a isso não tenho dúvida. Eu, por minha vez, muito mais interessada em ter o melhor policial de São Paulo à minha disposição. E já que estamos abrindo o jogo, devo confessar que este era meu único propósito. Jamais pensei que pudesse estar um dia jantando com você.

—Vê algum mal nisso?

—Não, claro que não. Aprendi que você significa muito mais do que um simples policial.

Tudo parecia caminhar melhor do que ele esperava.

—Bem, isto faz com que me sinta muito melhor. Você sabe, desde o início, aquele seu tom profissional e distante. Nada que pudesse me levar para perto de você.

—Mas nunca houve qualquer falsidade nisto tudo. Como disse, minha única intenção em tê-lo ao meu lado restringia-se ao seu aspecto profissional, nada mais. O resto, bem, acho que fui descobrindo, ainda não sei ao certo se...

Mário se aproximou dela.

Do lado de fora, o vulto estava a ponto de executar sua tarefa. Chegou a quase um metro do carro, e novamente não teve outra alternativa senão baixar a arma. Beijavam-se, e aquilo deixou-o desnorteado. Voltou para o meio das árvores.

Eva afastou-se rapidamente.

—Desculpe, não pude evitar—ele disse.

—Não quero que se desculpe, estamos nisso juntos—ainda assim procurou evitar os olhos dele.—Bem, agora tenho que ir.

—Espere...—ele a segurou pelo braço.—Só queria dizer que tudo tem valido a pena. E que encontraremos o responsável na MIC.

—Obrigada. Falamos amanhã, certo?

—Pode apostar.

***

Chegava a se surpreender com a velocidade dos fatos. Primeiro, exigira seus serviços. Segundo, parecia desejá-lo. E terceiro, ali estava, beijando-o. Acabava de transformar um vínculo profissional em algo muito mais particular, que poderia até prejudicar os negócios na medida em que ele, movido pela ânsia de estar junto a ela, se afastasse de suas atribuições na MIC. O fato era que ela preferia ouvir—talvez pela primeira vez na vida—a voz de seu próprio coração.

E aquilo tinha uma razão especial. Minada em suas virtudes em um momento de fraqueza, parecia refletir sobre tudo que tinha acontecido nos últimos dias. Valores? Ideais, claro. Sem eles não poderia viver. MIC? Exclusiva, prioridade. Mas até que ponto? Estava ali, ajoelhada diante de uma nova realidade, e nem por isso sentia-se menos feliz. Talvez não fosse exatamente paixão, amor, ou qualquer outra coisa que exigisse total despreendimento. Era querer estar perto dele, sentir-se protegida.

Eva despertou de suas reflexões assim que a porta do elevador se abriu. Entrou, apertou o doze e encostou-se no espelho. A porta ia se fechando quando de repente alguém pulou sobre ela. Ela se assustou e instintivamente procurou ir para trás, onde já não havia mais espaço. A porta fechou-se novamente. A porta se fechou, com duas pessoas dentro do elevador.

Mais uma de suas alucinações. O que viria em seguida? Uma rápida descida até o poço, um vôo na direção do inferno. Tudo não passava de...

As mãos dele se prenderam em seu pescoço. Carne sobre carne. Geladas, molhadas pela chuva. Não se tratava de mais uma fantasia.

—Mentiu para mim, vagabunda! Porquê?! Por que fez isso comigo?!

Apertou com mais força. Ela tentou se soltar, mas ele a impedia de fazer qualquer movimento. A cabeça ficou mais pesada e logo sentiu o ar faltar. Suas mãos se prendiam nas dele, mas não haveria qualquer chance. Era apenas uma questão de tempo até que estivesse morta.

Então, uma inesperada mudança de comportamento salvou-lhe a vida. Lentamente, as mãos dele começaram a ceder, cortadas por lamúrios, até que ele se ajoelhou aos pés dela.

Por que tudo insistia em acontecer ao mesmo tempo, sem deixar um espaço natural?

***

—Fernando, levante-se, por favor.

Ele não fez um movimento sequer. Continuou estirado, aos soluços. A raiva havia se transformado em dor e ele sabia, desde o começo, que seria incapaz de ir até o fim. Até agradecia pelos obstáculos encontrados ao longo do caminho.

A porta do elevador se abriu e Eva rezou para que estivessem no décimo segundo. Não gostaria de dividir aquela cena patética com mais ninguém. Aí estavam, último andar. O cara continuava ali, do mesmo jeito, e não teria outra alternativa senão colocá-lo para dentro de casa. Arrastou-o para fora do elevador e boa parte do caminho, até jogá-lo no sofá. Jamais poderia ter imaginado que uma simples separação desencadearia tamanho drama.

Se bem que, no que dizia respeito aos problemas do coração, não era nenhuma sumidade no assunto.

Tirou-lhe a capa cinza e teve a sensação de estar carregada com algo pesado. Buscou nos bolsos, e de repente o susto. Uma pistola. Sua mão chegou a tremer e a arma quase caiu. Ao que tudo indicava, ele tinha ido até lá para matá-la. Isso mesmo, matá-la, e por alguma razão tinha desistido no meio do caminho. Amor ao extremo, capaz de sacrificar a vida da mulher amada caso não pudesse possuí-la? Romantismo ou psicose?

Molhado daquele jeito ele não poderia ficar. A arma tinha ficado para trás, e com ela o impulso que premeditara tal ato. Não deveria haver mais motivo para medo. Ele continuava ali, anestesiado. Eva tirou-lhe as calças e as meias encharcadas. Abrigou-o num roupão azul, colocou um cobertor por cima. Ele tremia, e não era de frio. Eva fez um chá e se sentou ao lado dele.

Ele então abriu os olhos. Tudo tinha se passado muito rápido, quase não podia se lembrar. Por Deus, tinha desistido! Tomado pela loucura sim, guiado por uma força que não sabia ao certo de onde vinha. Passou, e ele agradecia por não ter feito nenhuma bobagem. Restava ainda o constrangimento de uma situação ridícula: a vítima no papel de salvadora. Digno de novela mexicana, digno de seu arrependimento.

—Vamos, tome o chá enquanto ainda está quente—Eva levou a xícara aos lábios dele.

—Você deve estar pensando que...

—Fê, por favor; não estou pensando nada. Apenas tome o seu chá, vai se sentir melhor.

O desnível persistia. Sempre presente e tendendo a aumentar numa situação como aquela. Ela por cima, ele por baixo. Inferiorizado psicologicamente, sem opções de escolha. O controle da situação, mais umà vez, nas mãos dela.

—Não tive a intenção, jamais conseguiria. Você sabe o quanto eu gosto de você.

Aos poucos, parecia recobrar sua condição. Eva se levantou e ficou caminhando sem rumo pela sala.

—Loucuras em nome do amor. Nunca pensei que pudesse chegar a esse ponto, Fernando. Não me bastam todos os problemas que já tenho?

—Perdi o controle. Quando vi você com aquele cara, ontem, quase enlouqueci, achei que seria capaz de fazer qualquer coisa. Sinto muito

Ela poderia ter jogado tudo para o alto, dizer que o que fazia da vida não era da conta dele e que talvez estivesse apaixonada. Poderia dizer que ele não passava de um moleque, irresponsável, tentando provar alguma coisa para si mesmo, colocando em risco a vida de outras pessoas. Pioraria as coisas, com certeza. E a arma ainda estava ali, a seu alcance. Uma vez calmo, melhor seria mantê-lo assim. Havia a chance de encerrar a noite sem maiores danos.

—Fê, aquele cara de ontem é um policial. Contratei-o para resolver alguns problemas na MIC, não tem nada a ver com o que você está pensando. "E além do mais, seu bostinha, não tenho que ficar dando satisfações a você."

—E estar com ele de noite faz parte do trabalho, Eva? E o beijo, o que me diz do beijo? Vi vocês dois no carro.

—Digamos que ele tem uma queda por mim e não pôde evitar. Isso não significa que exista algo entre nós.

—E isso a impede de ficar comigo...

—Não se trata disso. Você sabe que tomei a decisão de me afastar de você por outras razões.

—E esse tempo todo juntos? Não significou nada para você?

"Controle, Eva, controle. Procure não piorar as coisas, a auto-estima dele já está lá embaixo. Diplomacia e tudo acabará bem."

—Claro que sim, você sabe disso. Passamos momentos maravilhosos não foi?

Ele assentiu.

—Mas você sabia, desde o começo, como seriam as coisas, a MIC e tudo mais. Tenho o maior carinho por você, Fê, e não quero vê-lo largado por aí, sempre correndo atrás de mim, sem ser correspondido à altura. Você não merece isso. Merece alguém que possa se dedicar a você.

Ele se encolheu no cobertor. Tudo parecia estar sob controle.

—Você pode dormir aqui, se quiser.

Ele não respondeu. Envolveu a xícara com ambas as mãos, como se quisesse aquecê-las.

—Nunca estive aqui antes...

Fique, se quiser. Estarei no meu quarto se precisar de algo. Tenha uma boa noite.

Não se tratava de um convite.

***

O tempo tinha a enorme habilidade de condensar as coisas e, num simples intervalo, transformá-las nos mais inimagináveis contornos do destino. ZAP, tudo de forma rápida e certeira. Inesperado, e tudo não passaria de mais um conjunto de hipóteses, juntando peças sem encaixe, acelerando o ritmo dos fatos. Nada acontecendo ao acaso, mas misturado num redemoinho de dúvidas.

Marília. Mário não se conformava. Tantos os lugares no mundo e ela estava lá. Não haveria nada de anormal não fosse a data, coincidindo com a investigação. Por mais que não quisesse admitir—e não havia razões para fazê-lo, já que seres pensantes e que possuem duas pernas podem se locomover livremente pelos pólos do mundo—era uma enorme coincidência. Quantas centenas de pessoas não teriam estado em Marília na mesma época, sem que ele soubesse? Não fosse ele a conduzir as investigações e aquilo não faria a menor diferença. Se havia realmente algo, ela sabia disfarçar. E muito bem.

Sua noite não passou de um emaranhado de situações fictícias. A ansiedade e os possíveis desdobramentos da situação pareciam querer deixá-lo completamente louco. Era como se duas paralelas que haviam iniciado seu caminho há pouco tempo—de um lado uma paixão repentina por uma mulher que nunca tinha visto antes, de outro sua mais díficil missão, dificultada por seu passado e obrigando-o a conviver com seus fantasmas—quisessem se encontrar num mesmo ponto. Convergiam, como forças opostas que se atraem, e ele fazia questão de isolá-las. Se abrisse espaço para a razão e o equilíbrio, veria que tudo não passava de dúvida, numa probabilidade muito remota de ocorrer. Mas nesse estado valia tudo. Até pensar no caminho inverso: ela, a assassina, o atraindo para perto de si para resolver um problema imaginário e eliminá-lo no meio do caminho. Provável absurdo? Acreditava que sim. Deus não poderia estar jogando desta maneira com ele, dando-lhe com uma mão um caminho para o amor, para em seguida, com a outra, arrancar-lhe.

Enlouquecido, adormeceu. Passava das duas.

***

Fernando olhou para o relógio: duas e três. Tinha perdido sua última batalha. O instinto animal tinha ficado para trás, é verdade, e com ele sua chance de vingança. Não havia mais espaço para o ódio em seu coração.

Levantou-se e caminhou pelo corredor. Havia uma luz ao fundo e foi em sua direção, aproximando-se de uma porta entreaberta. O quarto dela. Pela pequena fresta, ficou a observá-la. Deitada, um livro na mão, a luz do abajur. Encostou um dedo na porta, e ela foi lentamente se abrindo.

Eva olhou para ele, e desta vez não se sentiu acuada. Ele parecia o homem mais desprotegido do mundo.

—Não posso ficar aqui—disse.

Eva fechou o livro e o largou sobre a cama.

—Não depois do que fiz.

—Fê, você não fez nada. Pensou em fazer, mas teve tempo e cabeça para desistir.

—Desculpe, não queria que fosse assim.

—Está tudo bem.

Ele se aproximou. Não havia como impedi-lo.

—Também não pretendia assustá-la, ontem no telefone.

—Você... Por que não disse nada?

—Não sei, não havia nada para dizer—ele se sentou na beirada da cama.—Me sinto só.

Encolheu-se sobre ela, pousou a cabeça em seu colo. Eva o abraçou. Ficaram assim por um longo tempo.

Seria o último momento ao lado dela. Dali para frente, teria que seguir seu próprio caminho. Claro que ele sabia, como também sabia que faltava só mais um detalhe. Baixou uma das alças da camisola, ela não se opôs. Temia por aquilo, mas ao mesmo tempo temia pelo que poderia acontecer caso negasse. A arma ainda estava na sala, e desde que ele se dispusera a cometer uma loucura, nada era definitivo. Faria, se fosse preciso.

Ele teria, enfim, sua última chance. Não importava se por desejo ou ameaça. Devolveu-a nua sobre a cama, e quando se preparava para se encaixar por cima dela, ela empurrou-o para o chão. Fernando caiu, rolou para o lado, e mal teve tempo de reagir. Ela estava sobre ele, pele com pele. Aquele corpo que sempre desejara, agora em seus braços. Prazer, puro prazer. Eva beijava-o, por todas as partes, num ritual de êxtase que o deixou imóvel. Meio mulher, meio animal. Meio difícil de entender. Novamente era ela quem tinha o controle da situação, mas agora não fazia a menor diferença. Se ela assim queria, só cabia a ele também satisfazê-la. Seria inesquecível.

Eva parou por um instante. Precisava de um copo de água, disse. Ele poderia esperá-la na cama, local mais apropriado. Fernando acompanhou com os olhos aquele corpo nu deixar o quarto e em seguida deitou-se, ainda surpreendido com tudo aquilo.

Da água para o vinho.

Como se não estivesse diante da mesma mulher.

Virou-se, na expectativa de que seu sonho pudesse se realizar nos próximos minutos. De costas, nem percebeu quando ela voltou, um ou dois minutos depois. Ela teve tempo de vir por trás, sutilmente. Ele só se deu conta assim que um leve movimento de seios passou a acariciar suas costas. O resto da noite se confundiu entre prazer e alucinação.

Estava feito.

***

Hermes já esperava por Mário, e desta vez não em sua sala, mas na sala dele. Surpresa, claro, mas aquilo só podia significar uma coisa: mais um crime tinha sido cometido. Depois do Daniel, algum outro infeliz. O sétimo passageiro.

—Perdemos o controle, Ventura.—O diretor atirou o O Estado de S. Paulo sobre a mesa. O jornal trazia, na primeira página, em letras garrafais, a manchete: "Deputado é vítima do serial killer. Polícia abafa o caso."—E isso não é tudo—ele prosseguiu. Veja o editorial.

Mário abriu na primeira página. O artigo falava sobre a onda de violência que tomava conta da cidade, a confiança do cidadão na polícia quase nenhuma—e o pânico que poderia tomar conta da população caso não se chegasse rapidamente a um culpado. A morte de um deputado, entre pelo menos outras duas já confirmadas, certamente exigiria maior empenho por parte da polícia. A polícia? Ineficiente, sem respostas. Truculenta, esse era o termo empregado para se referir a um soco desferido por um delegado do Departamento de Homicídios contra o repórter Gil Gomes.

—Filhos da puta!—Mário esbravejou. Pelo menos agora se lembrava do nome.

—O secretário de segurança e o Governador pediram uma reunião.

Mário largou-se sobre a cadeira. Não a sua, Hermes estava sentado nela. Aquilo parecia reforçar o seu fracasso.

—Puta merda, chefe. Quando?

—Segunda-feira. Prepare-se, não vai ser fácil.

Ele apenas balançou a cabeça.

—Sei que tem sido difícil, que temos poucas pistas, mas você sabe que isso não funciona como justificativa. Eles querem resultados, querem essa mulher fora de circulação.

—Estou fazendo o que posso, chefe, mas o que posso parece que não é suficiente...

—Eu sei, eu sei. Não o culpo por isso. Me coloco no seu lugar e vejo como é complicado lidar com tudo isso. A pressão faz parte, você sabe, não tenho outro caminho.

—Já me acostumei.

—É, só que daqui pra frente, a cobrança vai ser ainda maior. Eles vão ficar de olho, você pode apostar. O importante é evitar que mais crimes aconteçam. Quer dar uma olhada no último?

—Ele está aí?

—Claro que não. No IML.

Perguntas estúpidas como aquela davam ao diretor a certeza de que alguma coisa não ia bem com ele.

—Sua equipe liberou o corpo cedinho, achei que tudo bem se você fosse até lá depois.

—Tudo bem, eu vou. Quem sabe dá pra colher mais algumas evidências.

—Quem sabe...

Mário partiu, mais do que nunca cercado de inseguranças. Teria uma reuniào e não saberia por onde começar, não havia nada que pudesse alimentar de forma mais concreta as investigações. Tratava-se de uma mulher, e isso não era nenhum achado. Qualquer idiota chegaria a essa conclusão depois do episódio com o deputado Emílio. Loira, exuberante, garota de programa. Choviam aos montes nas esquinas. Sete assassinatos e ele já não era a mesma pessoa. O tempo, nessa espiral maluca, insistia em consumi-lo. Autoconfiança? Zero. Persistência? Zero. Agressividade? Zero. Sem falar no medo, o mesmo medo que ele pensou que nunca mais voltaria a sentir e que ali estava, grudado a ele como sua própria sombra. Tudo rápido demais para que pudesse perceber. E, misturada ao caos, Eva Miller. Reservando-lhe um lado mais seguro para que ele não explodisse antes do tempo. Estava ali justamente para isso, não para complicar ainda mais as coisas. Arrependeu-se de tudo que havia pensado na noite anterior, de todas as loucas tramas que havia traçado. Ela não estava ali por acaso, mas sim para ajudá-lo.

Essa era a única resposta.

***

—Quero ver o cara que chegou hoje pela manhã.—Foi logo mostrando a insígnia.

—Qual deles?—perguntou o funcionário.—Quatro corpos deram entrada.

—O que foi morto a facadas.

—Ah, você quer dizer o cara novinho. Venha.

O funcionário acompanhou-o até uma das câmaras, e a gaveta 6463 se abriu.

—É este aqui.

Mário ficou diante do corpo, ainda coberto pelo lençol. Pela sétima vez era obrigado a fazer a verificação, e nem por isso se sentia mais à vontade. Muito menos ali dentro.

O funcionário levantou o lençol e Mário quase caiu para trás. Sentiu a cabeça rodopiar e teve que se apoiar na ponta da gaveta para não cair.

—Sente-se bem, doutor?

A pergunta não teve resposta. Mário saiu em disparada, ainda sem acreditar no que tinha acabado de presenciar. Arrastou-se até a calçada e, num último movimento, amparado pelo capô de um carro, vomitou.

Ironias do destino.

This is an excerpt from Tanatos by André Charak, Geração Editorial, São Paulo, 1995, 256pp.

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